MEU CORAÇÃO NA MESA
Pensamentos, descobertas e receitas que pedem um coração partido
Das tripas
Veias azuis e tripas jogadas sobre a mesa fria de inox, o vermelho cremoso e cansado deslizando em pingos longos até o chão, meu braço desbotado em amarelo e púrpura com os dedos em seta apontando a visão lúgubre: meu coração fora de mim. A cena macabra vem bater em meus pensamentos serenos a cada vez que procuro elucubrar o que terei pela frente: a cirurgia cardíaca. Procuro os médicos, os mais diversos especialistas, a fim de construir meu conhecimento e tornar sólida minha sabedoria para, então, encarar o amanhã, logo ali, com o peito aberto e a coragem escancarada! Não é um transplante, é uma espécie de retrofit que não pode mais ser adiado. Limpeza e desentupimento necessários, válvulas legítimas que possivelmente serão trocadas e terei um certificado de garantia para mais uns tantos anos em funcionamento livre de preocupações. Oxalá!
Enquanto espero, troco hábitos que não servem mais por novas leituras, caminhadas leves, roupas (ainda mais) comfy, afagos e afetos, casa cozy, a cozinha mínima e (muito) saborosa que me encanta – o estilo de vida do qual me aproximava e afastava como um ioiô enredado que não cumpre sua função. Agora é pra valer! Vou encarar a mesa, o bisturi e o conserto das peças no motor que está batendo pino e sairá como novo (não é assim quando se arruma o carro velho?).
Sentirei falta de minha mãe, partida recentemente – e muito bruscamente. Mas conto com sua presença nas lembranças alegres e amorosas que ela distribuiu e que revejo nos gestos de minhas filhas. De mãos dadas com elas, concluo o sonho ruim com o coração no peito, onde é seu lugar, e a sensação feliz de estar de volta à vida!
O que os olhos leem
Perto do Coração Selvagem, Coração Delator, Meu Coração de Pedra-Pomes, Eu e Esse Meu Coração... clássicos e pops da Literatura brasileira e mundial com o tema cárdio andam passeando pelo meu colo, pela cozinha e minha biblioteca entre receitas e curiosidades que são meu suplemento de vida. Quero saber tudo sobre o músculo que me habita e que, se não está me dando sopa, está rendendo um caldo em meu contrito peito e em minha imaginação sem limites. Vou lendo aos poucos os que encontro, as indicações, os presentes em capa dura ou com orelhas, os descobrimentos que topo navegando em várias línguas à busca de mais sabor e sabedoria.
O coração selvagem de Clarice é como uma angina: brusco e inclemente. E, como a autora, universal: publicado pela primeira vez em 1943, quando tinha 20 anos de idade, fala com o coração de uma mulher em qualquer tempo e lugar. Edgar Allan Poe teme que seu próprio coração o entregue no conto em que o terror mora dentro do próprio peito e a loucura não tem residência fixa – o Coração Delator. São para ler e reler, com todas as palpitações a que se está sujeito. Eu e Esse Meu Coração é um romance young-adult da autora americana C. C. Hunter que faz ficção com a situação real que enfrentou junto ao marido, transplantado e salvo da morte. A personagem que limpa o hospital e coleciona besouros, da escritora e roteirista Juliana Frank, em Meu Coração de Pedra-Pomes, é minha próxima aventura que virei aqui relatar assim que for devorado.
Torô
Com uma amiga à mesa, nos reunimos na cozinha para o jantar a três. Ela, meu marido e eu. O prazer de preparar e servir a refeição é parte de mim e eles sabem: sentados, assistem à minha coreografia despreocupada. O torô (a parte mais rica do atum bluefin) está clarinho e tenro como saído do mar, trazendo seu perfume vigoroso e fresco. Em cubos, no prato de louça portuguesa, derramo sobre o tartar o azeite virgem italiano, a ciboulette picada na faca, e um nadica de sal. Siciliano em raspas, alcaparrinhas e mostarda ancienne para completar. Vai derreter na boca – é por isso seu nome em japonês, toro. Na travessa colorida, cortei ao meio os tomatinhos firmes com folhinhas de manjericão e de novo o azeite. No bowl branco, as folhas frescas rasgadas com limão – qualquer complemento fica por conta do conviva, está à mesa: azeite, sal, balsâmico. Para eles, um pote de torradinhas fininhas feitas em casa com o pão de fermentação natural que sobrou dia desses. Chá gelado para beber. A pesca desse atum tem muitas restrições, por estar ficando raro, e é essa qualidade que ressaltamos no encontro.