FLORES
Flores
As cenas mais recentes que trago da Porto Alegre têm flores: nas mãos inanimadas de minha mãe e em todo seu contorno na plataforma de embarque para o céu; nas vestes almodovarianas de minha filha para o funeral da avó, nas águas imprecisas do lago Guaíba sob seu sol laranja, cobertas de pétalas brancas, oferendas que fizemos à Marlene.
Há flores em tudo que vejo...
Flores singelas em uma garrafinha de vidro sobre a mesa no Capincho, o restaurante de Marcelo Schambeck que escolhemos para nos alimentar com mais que tristeza e água mineral, a refeição dos últimos dias
Floriana estava na cidade ligada em tudo. Foi lá para isso: enfrentou o sofrimento da avó dedicada a acompanhá-la até o último instante – e foi o que fez: sob rezas, perfumes e canções, junto com o primo, entregou-a nas mãos do infinito. A passagem que se tornou seu próprio rito de transformação. Minha filha, a neta mais velha, segurou a mão da avó que sempre a trouxe no colo, embalando-a com sabedoria, conhecimento, afeto – amores-perfeitos. Enquanto isso, Julia, a filha mais nova, segurou as minhas mãos, minhas angústias e meus braços furados de cateteres e agulhas, ora apoiando, ora empurrando, quando preciso, controlando a preocupação e o abatimento enfeitada por miúdas margaridas de seu universo pop nostálgico.
Florisbelas. Escolheram o menu degustação e Schambeck tratou de servir atenção e carinho na sequência colorida, perfumada e surpreendente. O arroz de cogumelos eyringii deixou aquele conforto na alma. Fizemos como nas tradições populares: bebemos e comemos aos mortos da nossa história, minha mãe.
Há flores cobrindo o telhado, embaixo do meu travesseiro (Flores, Titãs).
Adeus, Porto Alegre
O que tem de especial em Porto Alegre está acima do chão
(Porto Alegre, Nenhum de Nós)
A viagem do adeus. Aterrissei no mood de despedida – intermináveis lembranças dessa cidade onde escrevi as primeiras páginas de minha história familiar de afetos, arte e comida. Sou nascida na Porto Alegre dos anos 1960, vivi na capital até o comecinho dos coloridos 1980 e pude experimentar muitos sabores do mundo passeando no sobe e desce da cidade.
Desde pequena, com meu pai, habitué das boas mesas e que outrora foi parceiro nessas aventuras, conheci os clássicos restaurantes de Porto Alegre: o Gambrinos, 130 anos servindo mocotó e rabada – coisas estranhas para uma garota aos 15 anos... o Copacabana, que foi açougue, nos anos 50, com o nome Espina, e se tornou a cantina onde é impossível não se atirar nas entradas – polenta, maionese de batata – e depois comer de joelhos o filé à parmeggiana. Uns lugares para visitar em dias pontuais. No calor, chopp com sanduíche aberto do Prinz e muita mostarda forte. Aos domingos, carne! E lá íamos nós para a churrascaria Santo Antônio devorar os filés altos e suculentos. Ou então assistir o boi girando na porta da mítica Boi na Brasa.
Mais tarde, vivendo o mundo com minhas próprias pernas, passei a descobrir meus próprios gostos. O Doce Vida e suas histórias da louca agitação cultural da época; o IAB, onde se ensaiava o jeitão bistrô que um lugar descolado podia oferecer: prato único, ingredientes originais – um luxo! A primeira sanduicheria: Primavera! Onde você poderia encontrar, no Brasil tropical, um sanduíche com lombo de porco, ameixa e abacaxi num pão argentino? Só lá! Depois, o Sanduíche Voador: anos 80, até hoje é uma lembrança arrojada que trago na memória gustativa e visual. O queridinho Ocidente, bar e casa de shows, onde eu vendia minha granola hippie e consumia a torta de ricota Por lá, uma cozinha tão pop quanto a programação, e segue bombando!
Hoje fico pulando entre as festas dos vinhos na Serra, os confeiteiros uruguaios e argentinos, a cozinha do pampa com Marcos Livi, os pães da Barbarella, os chás e ervas da Carla, a sofisticação do Marcelo Gonçalves, a ousadia do Schambeck, a primazia do Kristensen, a cozinha plural do Mandarinier. Tudo se mescla e desemboca no trabalho que desenvolvo aqui e acolá, em casas como o 1835 Carne e Brasa, instalado no topo da paisagem serrana do Laje de Pedra, ou o 20Barra9, que me deu espaço para criar mais de 80 receitas de molhos, legumes, saladas, sobremesas e acompanhamentos em suas casas (tem receita no final).
Herança faz história. E comida.
Na saudade que mistura inspiração e recordações, vivo conectada à cultura de minhas origens e as carrego junto com a bagagem que agora parte comigo, no check-in do Salgado Filho.
Até a próxima, Porto Alegre!
Da janela do avião eu vejo Porto Alegre. Vejo o futuro em flashback.
Meu pai, minha filha, nossa casa.
(Por Acaso, Engenheiros do Hawaii)
…
Comida de hospital
A comida está para o meu cotidiano como o gás para o fogão: sem uma boa chama, não ligo.
Hóspede recente das redes hospitalares entre Porto Alegre e São Paulo, antes para minha mãe e agora para mim mesma, tenho que enfrentar a hora da refeição com cuidado. Em parte pelo desânimo que é encarar pratos branquelos e insossos, em parte pelo perigo que a desconexão entre o paciente e sua dieta pode oferecer.
Você fica com o coração na mão.
Arroz branco como a neve, um inocente purê de batatas e carninha picada com molho – faço (e como) com gosto e capricho. Separados, em geral. Quando vem tudo junto ou é porque você trabalhou carregando container o dia todo, na beira do cais – e ainda pode acrescentar feijão ao combo – ou então é uma cilada. Ainda mais se você é hóspede da Cardiologia.
Quando, no caso inverso, você pariu uma criança, duas ou mais, se forem gêmeos, e precisa abastecer o caminhão-pipa para amamentá-la(s), não dá para vir um peixe aguado com legumes desnutridos da pressão... Sem falar no pão e manteiga que é servido pela manhã: tudo que uma parturiente mais sonha é fibra e frutas para tranquilizar seus intestinos recém invadidos. Já pedi suco de ameixa, mamão e laranja a fim de fazer a máquina funcionar como deve ser.
É bem democrático: um caso mais simples dentro do hospital é tratado, em termos de alimentação, como os complexos – a comida é a mesma. Na próxima visita vou levar os cardápios Very Deli e Estação Carlota debaixo do braço: ali tem legumes variados, frutas, sucos, pães naturais, carnes, peixes e pescados saborosos, ricos e frescos. Ou distribuo cartões e QR Code para uma consultoria bacana combinando sabor e saúde. Em todo o caso, sempre tenho a minha canja de anjo (com o cabelinho) para receitar (tem receita no final). Pronto, falei.
É que a felicidade, quando eu encontrei, veio pela metade, o motivo eu não sei
(Samba sem refrão, de Samba e Amor)