SONHOS, SUOR E GLÓRIAS NO MUNDO DA GASTRONOMIA
Lendo, assistindo e degustando histórias de gente da comida.
O fascínio de cozinhar, de produzir um alimento, um vinho, é um feitiço inescapável para quem é tocado por esse desejo. As histórias da gastronomia comprovam: são muitas, com voltas, reviravoltas e uma infinidade de sabores.
Podemos começar por um livro que virou filme e narra a saga de uma jovem viúva no século 18 entre vinhas, a dor da perda e a difícil decisão de ir em frente. Ou um episódio de série que mostra um cozinheiro determinado a fazer a melhor pasta, entre a técnica, a resiliência e a aparentemente indecifrável tradição italiana. Ou, ainda, ler as aventuras de uma jornalista brasileira que jura ter comido o mundo todo por onde viajou e relata em livro a colossal jornada. Que tal assistir a epopeia de um jovem negro novaiorquino em busca das chances de ter seu próprio restaurante na cidade?
Não é só sobre comida.
São histórias contadas, narradas em episódios, registradas em imagens belas e suculentas, descritas em detalhes que despertam o apetite e a curiosidade. Como ele conseguiu? Quando ela decidiu virar a mesa? O que ele sentiu ao provar aquela receita? Uma boa história é como um bom prato: atiça o paladar, provoca a sensação de encontrar o Graal, o lar perdido onde a gente quer morar e encontrar um prato quente e reconfortante na cozinha. Por muitas vezes, uma boa história salva: o protagonista e quem se reconhece nela.
O chef Kwame Onwuachi no seu premiado Tatiana.
O livro de Kwame
Salvação - “A comida me trouxe de volta” — é a fala serena do jovem Kwame Onwuachi, chef e criador do Tatiana, seu restaurante ranqueado em 1º lugar em New York, no Lincoln Center, que me chama a atenção para o documentário na tv. Kwame é o personagem real do sétimo episódio da mais recente temporada do Chef’s Table, na Netflix. Nascido no Bronx, filho de uma empreendedora de comida e pai nigeriano, a irmã mais velha tomava conta dele — e da comida que comiam. Adolescente, tornou-se fruto do meio, como ele diz, e a mãe o embarcou para a Nigéria de férias com o avô — só poderia voltar quando “aprendesse a ter respeito”. Voltou, mas não demorou para cair no ritmo anterior. Foi na Universidade que teve o estalo: o estudante descompromissado trocou o comércio ilegal de bebidas e drogas pela comida que um dia preparou para vender aos colegas — o frango ao curry foi o primeiro prato. A partir daí, com erros e acertos, dedicou-se a cozinhar, resgatando as lembranças de seu paladar amalgamado pela diversidade novaiorquina, pela herança africana, pelos sabores da infância nos restaurantes e carrinhos de comida barata — chinesa, indiana, caribenha —, levado pela irmã. Demorou o tempo que tinha que ser: aos 35 anos Kwame já abriu e fechou restaurantes, foi rejeitado pela mídia e depois louvado, frequentou o Culinary Arts, venceu concursos na tv, é o primeiro lugar no 50’s Best Restaurants de 2023, quando, com o Tatiana, nome de sua irmã, encontrou todas as respostas que precisava. Ele ainda é o criador do Dōgon, em Washington D.C.
Kwame se diz tímido, mas não tem medo de falar que sua coragem está em ir em frente enfrentando a si próprio — e vencer. O jornalista Joshua David Stein é co-autor do livro de Kwame Notes from a Young Black Chef, com receitas e dicas que compõem essa história peculiar e admirável que o jovem chef negro está escrevendo.
O livro da escritora, enóloga e best-seller do NYT, Tilar J. Mazzeo
Resiliência — O livro A Viúva Clicquot tem 300 páginas da excitante vida da mulher que construiu um império com seu nome há mais de 200 anos. Tilar Mazzeo, a autora, fez uma profunda pesquisa, baseada em viagens, visitas in loco e experimentações pelo mundo atrás das evidências da vida pessoal de Barbe-Nicole Ponsardim, la grande dame Veuve Clicquot. Mazzeo buscava a mulher por trás do rótulo laranja, da imagem rotunda e sisuda que ilustra, sem cor, sua presença imponente. Encontrou a própria história do Champagne, a bebida nascida na região francesa onde a Viúva Clicquot viveu e construiu seu reinado. Impossível escrever uma sem a outra. A obra é detalhada e se não traz toda a intimidade de Barbe-Nicole, como gostaria de ter-se aprofundado, faz suposições bastante plausíveis. Mazzeo usa fatos para supor cenas, quando diz que”
No filme lançado nos cinemas no Brasil em 2024, com o mesmo título, o enfoque recai sobre a relação de Barbe-Nicole e o marido, François Clicquot, quem a introduz no mundo dos vinhos. Com a morte de François, a história destaca as escolhas que essa jovem, viúva e mãe, aos 27 anos, faz para prosseguir com os sonhos do falecido, agora os dela própria. Barbe-Nicole tinha outras opções, bem-nascida e articulada, do que tomar a frente dos negócios em um mercado dominado pelos homens, suscetível às constantes guerras e restrições, mas seu espírito empreendedor, resiliente e audaz a faz ir em frente com a produção vinícola enfrentando inúmeros revezes. Até conquistar o mundo com o seu champagne.
Pasta – Evan Funke ainda não sabia os rumos que tomaria, nascido entre os cinco filhos de um casal bem-sucedido na carreira cinematográfica em Santa Monica, na California. Ele conta essa história em cenas lindas no episódio sobre macarrão da série Chef’s Table. É a pasta quem vai conduzir sua jornada até alcançar a realização pessoal — e profissional — ao se dedicar a fazer com as mãos a massa perfeita. Funke se viu intrigado com a magia do que poderia parecer simples: misturar farinha e ovos e obter a pasta. Desafiado pela paixão que descobriu em si, foi atrás da fonte da sabedoria. Sem falar a língua, determinado a aprender, Funke foi morar em Bologna, na Itália, atrás de Alessandra Spisni, para cursar sua escola, a Vecchia Scuola Bolognese. A bem-humorada nonna repete para Funke como é a receita: farina, uova e il cuore! Para ele, foi o chamado para entregar corpo e alma à feitura da pasta perfeita.
Tanta dedicação e empenho levaram Funke a escrever o livro de receitas American Sfoglino, que se aprofunda na beleza e tradição da sfoglia, que é uma folha de massa enrolada à mão, compartilhando técnicas clássicas dessa autêntica pasta da Emilia-Romagna. O livro recebeu dois prêmios nos Estados Unidos, em 2020: Melhor Livro de Receitas, Chefs e Restaurantes e Melhor Fotografia, da James Beard Foundation. Funke é o fundador de seis restaurantes nos Estados Unidos, cinco na California e um em Miami, na Florida.
Evan Funke faz a massa perfeita.
O livro de aventuras de Jussara Voss
Tudo – Jussara Voss empunhou talheres e seu apetite para rodar o mundo e comer — queria conhecer todos os restaurantes possíveis. Ela saiu de casa, em Curitiba, e partiu com essa intenção. No seu livro Juro que comi, Editora Telaranha, 2024, estão 124 restaurantes em 17 países! A jornalista, blogueira e economista não é só plural consigo mesma, mas também com a diversidade de lugares e pratos que sem medo se propõe a comer: tem de tudo. As crônicas da autora narram a experiência desde que chega à cidade, destacam algum acontecimento peculiar, como passar algumas horas no banheiro, em Londres, ou viajar para o frio a 650km de Estocolmo para comer perto do Polo Norte... Ela não desiste.
“Você comeu o cardápio inteiro”, diz o garçom para Jussara em Barcelona. Ainda que porções reduzidas, pois estava sozinha, enfrentou a sequência com 27 pratos sem sofrer, pelo contrário. Jussara tem esse espírito e esse estômago: gentil e corajoso. Vale a pena passear com ela pelas páginas do livro, ainda que o apetite — e o hábito de cozinheira — me tenha feito procurar pelos pratos e as receitas. Juro que fiquei com fome!