PADEIRAS, PADEIROS E PADARIAS:HISTÓRIAS DE FERMENTAÇÃO
Se nos registros históricos, o pão surgiu com a coleta de trigo selvagem misturado à água e essa massa levada ao fogo para assar, junto às carnes de caça, nos nossos dias ficou fácil — e gostoso — encontrar pães de fermentação natural feitos por padeiras e padeiros por toda a São Paulo. O pão ancestral está aqui e nem é preciso enfrentar feras e dragões para tê-lo: só o tempo.
O pão de A Padeira (foto Bruno Geraldi)
O pão é o alimento que escreve a nossa história como Humanidade, em tempos que avançam no passado até muito antes da prática da agricultura, que, acreditava-se, teria permitido sua invenção. Não foi bem assim. Os mais recentes achados arqueológicos na Jordânia comprovam a existência do pão antes do cultivo de grãos — há 14 mil anos... A partir de um trigo selvagem, utilizado pelos caçadores-coletores do Neolítico, misturado à água e posteriormente assado, com o fogo feito para as carnes, criou-se o pão. Depois vieram as descobertas da fermentação e surgiu o pão como o conhecemos agora, aquele que virou moda pegar com a mão e perguntar: “É levain?”, caprichando no sotaque.
Levain, sour dough, masa madre são os nomes nas diferentes línguas que identificam o fermento, a massa-mãe, como em português, no processo de fermentação natural para fazer pão — o “bichinho”, como chamam a cultura de bactérias e leveduras resultante da mistura de farinha e água. Aí começa a história e ela nunca termina: a fermentação ultrapassou os séculos para ser a estrela da panificação da nossa era, seja pelas trends da gastronomia, seja pelos benefícios à saúde, seja pelo prazer e gosto de saborear esse pão feito de tempo, história e a paixão e dedicação de padeiros e padeiras.
Claudia Rezende escreve uma admirável trajetória com o pão artesanal, recheada de plot twists, que a levaram a criar a original Zestzing Padaria Artesanal. Sua história é tão rica e saborosa como seus pães. Ela tem formação em artes (como eu), fez carreira em comunicação (eu também) e mudou seu traçado para fazer pão: foi estudar na California e na França as melhores técnicas de panificação e viennoiserie. Curiosa, comprometida e determinada, ela está sempre atualizada e nunca desliga de sua cria, a massa-mãe de seus pães. “Na panificação, é preciso entender os processos para obter o melhor resultado: o pão requer sensibilidade, é um ser vivo, com quem a gente precisa se conectar para alcançar o melhor resultado” — narra a padeira. Eu sinto na boca o que ela quer dizer, ao provar um naco crocante, firme e delicioso de seu pão de base, o campagne da casa.
Claudia na vitrine na Zestzing com as delícias da sua viennoiserie
Claudia conta que cada padeiro escolhe as características de seu pão — mais ácido, mais láctico. Isso é determinado pela fermentação natural. A vantagem da fermentação natural é que ela baixa o índice glicêmico do pão, no processo químico que quebra o amido e os açúcares — o que oferece grandes benefícios na digestão do alimento. “Tudo é demorado”, ela ressalta, “mas ganhamos mais aroma e sabor”. Os croissants de Claudia que o digam: apaixonada pela viennoiserie, seus croissants são considerados os melhores da cidade e por eles, e todo o conjunto da obra, a Zestzing e Claudia vêm recebendo prêmios como os de Veja São Paulo, SP Gastronomia e mais.
Croissants da Zestzing estão entre os melhores de SP
Ela destaca que o tempo é o ingrediente indispensável para o pão. Para nós, a paciência, pois a Zestzing abre em horários especiais, e fico esperando na porta para levar o pão de forma multigrãos, a baguete, croissants... As quiches de espinafre costumam estar na minha mesa uma vez por semana junto a uma salada frugal — me sinto picnicando, com os dedos agarrando as coisas, gulosa, para não perder nem uma casquinha.
É com Alethéa Suedt que se torna possível conhecer outro lado dessa saga do pão: o cultivo dos grãos. Na Vila Beatriz, Alethéa inaugurou A Padeira em 2016, mas já vinha produzindo e comercializando de forma itinerante os seus pães de fermentação natural. Ela cursou Gastronomia em São Paulo e especializou-se em panificação na França. Construiu com as mãos na terra e o mira na qualidade a sua missão: em A Padeira, planta-se o próprio trigo, moem-se os grãos, cultiva-se o fermento, manuseia-se cada fornada, pão por pão. Frescos e de fabricação limitada, todos os pães são produzidos pessoalmente por Alethéa e a equipe, formada apenas por mulheres padeiras. Esse movimento todo, intitulado “Da Terra ao Pão”, nasceu quando Aléthea entendeu que o pão artesanal começava muito antes da farinha, ainda no campo. O cultivo de centeio e trigo é feito em Piracaia, no interior de São Paulo, e nas cidades de Constantina e Ibirubá, no Rio Grande do Sul. Selecionar os grãos, plantar, cuidar, colher, beneficiar o trigo e transportar são as etapas iniciais da produção do pão artesanal, que leva em torno de nove meses — não deve ser coincidência...
A padeira Alethea Suedt (foto Ilana Lichtenstein)
Faz diferença: os pães são obras artesanais originais e deliciosas. De lá, sou a cliente do pão ancestral, cascudo e potente, o brioche de lavanda, uma delicadeza. Agora, nas festas, a cesta de Natal me capturou: além do pão, tem panforte (perdição), azeite, mel e um café especial cheiroso da Catarina Coffee Lovers!
O Luiz Américo Camargo, jornalista, escritor, padeiro e empresário, autor de dois dois livros sobre o assunto — Pão Nosso e Direto ao Pão — aborda todas as formas de fazer, entender e comer pão. Ele se diz um comunicador do pão, cruzando fronteiras para levar aulas, palestras e cultura sobre esse alimento milenar que sustenta a Humanidade. Luiz Américo e os sócios Marie Camicado e Fabio Kow fundaram a padaria Na Janela, onde produzem enorme variedade de pães, rústicos, macios, e diversos folhados crocantes e perfeitos para levar ou comer na hora. Os rústicos são o Da Capa (do livro), e os de azeitonas, de chocolate e castanhas, nozes, as bengalas e baguettes.
No meio, Luiz Américo, com os sócios Marie Camicado e Fabio Kow
Na Janela e os bagels
Eu mesma sou fã dos bagels, que me transportam para um lunch no East Village, com seu perfume defumado de salmão e cream, quando vivi na cidade. Na Janela já tem a quarta loja inaugurada em um ano de funcionamento, espalhando por toda a cidade o cheirinho de fermento, cultura e história do pão artesanal.